terça-feira, 20 de junho de 2017

Entre as cinzas da sobrevivência



Tenho fascínio pelas teorias de evolução das espécies e do universo. Não me assusta saber que somos resultado de poeiras cósmicas e que vivemos num pequeno planeta rochoso que já sobreviveu à extinção dos outros seres que o dominavam. Acho maravilhoso o aleatório e saber que o homo sapiens só existe porque o altruísmo dos nossos ancestrais assim o permitiu.
Sei, por outro lado, que este cruzamento probabilístico nos mantém muito vulneráveis. O que me leva a compreender a nossa existência como uma improbabilidade mágica. A magia contrasta com a supremacia inventada e a negação das nossas fragilidades.
No fim-de-semana passado, em Figueiró dos Vinhos, assisti à luta pela sobrevivência de outra espécie. Perante a inevitabilidade do incêndio o Eucalyptus Globulus mostrou ser muito mais apto às condições que o meio nos apresentava. Uma espécie sem vontade própria usada como fonte de rendimento e lucro rápido resistia ao fogo cruel que tirava a Vida a dezenas e dezenas de pessoas.

Este é dos textos mais difíceis que tento escrever. Tem tanto de difícil quanto de imperativo. Apesar da desordem das memórias e do bloqueio emocional, escrevo-o porque as gentes daquelas terras merecem ser lembradas. Gente humilde e simpática que nos recebia com sorrisos. Pessoas que se espalhavam nas diversas colinas e vales que as estradas estreitas unem. 

Começámos o fim-de-semana com promessas de perfeição. Na praia fluvial das Fragas de S. Simão encontrámos um cenário idílico, como tantos outros que iriamos visitar. A densidade da água fresca permitiu-nos saborear, serenamente deitados sobre ela, o instante. Olhávamos um pequeno pedaço de céu que as duas grandes fragas apontavam. Por companhia a música das quedas de água. Mas num breve instante uma espessa nuvem de fumo negro apoderou-se do cenário. Do incêndio no concelho vizinho chegavam ventos quentes que contaminavam a mistura gasosa que respirávamos. Sentimos o sobressalto mas estávamos longe de imaginar as proporções da tragédia. 

Um par de horas depois, em Penela ouvimos as primeiras notícias. Conversámos com o dono do restaurante que, num desabafo penoso, confirmou a informação que queríamos falsa. Recordou o inferno que viveu em 2012, nos incêndios que assombraram o concelho de Penela. Falou com revolta das histórias da apropriação de terras por parte das empresas de celulose. Explicou-nos como é fácil convencer pequenos proprietários a plantar eucaliptos, pois o lucro é grande e quase imediato. E que é ainda mais fácil convencê-los a vender as suas pequenas terras à empresa que por ali se vai instalando. Falou-nos do desrespeito à lei, por si só muito insuficiente, e de uma ação movida por um autarca contra um dos anteriores governos por desautorizar a deliberação da Câmara. Deliberação essa que desaprovava novas plantações de eucalipto.

De regresso ao lugar onde íamos pernoitar encontramos autênticos serviços de urgência improvisados. Muitas ambulâncias, muitos profissionais de saúde, helicópteros do INEM. E feridos, muitos feridos. Chegámos ao troço do IC8 cortado, as imensas luzes dos carros da polícia, GNR e ambulâncias pareciam pequenos pirilampos comparados com o clarão de fogo ali tão perto. Invertemos a marcha.
No lugar de Casal Ruivo ficámos de vigília. Em poucas horas o clarão vermelho alastrou-se e fez uma tangente às árvores que nos rodeavam. Mudou de direção porque o vento assim quis.Percebemos a proximidade do incêndio, não por o vermos mas sim porque as luzes dos carros dos bombeiros e as comunicações rádio se fizeram notar. 

Num instante uma imensa nuvem de fumo invadiu o céu e um bafo terrivelmente quente enfrentou-nos. Telefonámos à proprietária do alojamento local que veio de imediato ter connosco. Vimos duas bolas de fogo que se lançavam para uns km de distância. As árvores em chamas livravam-se assim da casca que as afligia. 

Fizemos companhia à senhora que nos acompanhava a nós. O marido pegou no carro para se inteirar da proximidade do perigo. Voltou muito rápido. Começou a regar a área circundante ao terreno. Depois foi ajudar um amigo numa estrada próxima. Todos estes comportamentos são normais e humanos. Ninguém pode dizer o contrário.
- Estas noites são intermináveis, disse a nossa companheira. Finalmente a noite deu lugar a um amanhecer cinzento. Nevava cinza contínua e abundantemente. No chão muitas folhas de eucalipto negras e ainda inteiras.  

Na despedida, um turista inglês perguntou-nos como era possível todos os anos chegarem ao Reino Unido notícias de incêndios em Portugal e ainda não estarmos preparados para esta tragédia. Não pode haver árvores destas tão perto de habitações- dizia- isto é petróleo!
Quis dizer-lhe que a calamidade foi possível por muitos mais fatores. Uma zona com população reduzida e dividida em pequenos isolamentos. Difíceis acessos, poucos meios. Heróis que vão além da exaustão para salvar vidas, aos quais se agradece em discursos demagógicos e se nega um salário decente. Escolas que não nos preparam para reagir nestas situações. Falta de investimento. Meios de comunicação social que não prestaram informação aos que dela necessitavam urgentemente. Partidos políticos que só apresentam propostas quando a sensibilidade eleitoral está ao rubro. Governos velozes em assinar protocolos de milhões com grupos como a Altri e demasiado lentos em mudar o paradigma das forças armadas. Um sistema económico mundial que subjuga vidas a regras de deficits. Um mundo onde o “sucesso” se mede por taxas de produto interno bruto e se desrespeitam os conceitos mais simples para manter a vida no planeta.
Quis dizer-lhe… mas não era o momento. Acompanhava uma família também inglesa que tinha perdido a casa no incêndio. Há momentos que o respeito nos exige silêncio.

Iniciámos a viagem de regresso mas antes parámos em Avelar. Catástrofe e negação pelas ruas. Pessoas socorridas em pavilhões, muitas outras simplesmente à espera. Várias tentavam em vão contactar familiares. Choro, tristeza e dor misturados com uma nuvem cinzenta que tapava o sol.
Sentimo-nos imensamente impotentes! Não sabíamos se deveríamos ficar para ajudar alguém ou se seríamos mais um estorvo. A angústia mantém-se. 

Mas agora, mais do que relatar os acontecimentos, importa apelar à consciência. Este é um momento de coragem. Coragem de assumir os erros do passado e agarrar o presente pelo futuro. Por respeito a todas as vitimas, por respeito à Vida exigimos que os nossos governantes deixem de obedecer às ameaças de grandes grupos económicos. A nossa vida é precária, temos o dever, como espécie, de a proteger e de protegermos todas as outras formas de vida. A Terra é um gigante ecossistema e a nossa interação nele tem consequências enormes. Aproveitemos as vantagens genéticas que temos para que essas consequências sejam positivas.
Solidariedade com as vítimas é pouco!

domingo, 14 de maio de 2017

Instantes



Muitas vezes ela tem necessidade de fazer as pazes com o Mar, outras mais de o visitar sem o olhar. Chega perto e ignora-o, olha fixamente o horizonte ou as nuvens que dançam no céu. Interiormente sente-se vingada por não corresponder com um sorriso aos salpicos atrevidos. 


Quando lhe quer dizer que perdoa a rejeição daquela noite, a recusa em a receber na sua paz fria, não vai sozinha. O seu companheiro segura-lhe a mão enquanto caminham trôpegos pelos socalcos de areia. Ela, gradualmente, enfrenta o medo. A cada nova visita aproxima-se mais. O seu companheiro larga-lhe a mão para que ela e o Mar conversem a sós.  E ela apaixona-se, mais e mais, por aquele homem que observa a sua essência do outro lado da lente.

O mesmo que ri e compactua com os seus impulsos. Ela subitamente obedece a uma vontade interior: entra e abraça as ondas. Como ela gosta de abraços! O Mar acolhe com prazer a partilha do carinho na sua forma mais pura. O frio obriga a um momento fugaz mas ainda assim intenso. Ela corre novamente para os braços que a esperam segurando a toalha que a aquece. 


Mas há mais inquietação dentro dela. Talvez um dia ela seja capaz de fazer as pazes com mar e céu noturno em simultâneo. Por agora a Estrada de Santiago é ainda um labirinto doloroso perseguindo as ondas. A luz do farol afigura-se como uma arma pontiaguda, uma ameaça no cruzamento da escuridão. 


Por enquanto, os abraços do mar dourado pelo Sol bastam para que ela e ele se sintam vivos. Aprenderam a caminhar de mão dada, desde o primeiro dia, quando os seus dedos se entrelaçaram no meio da multidão. Sabem que cada toque, cada passo, cada avanço ou recuo deve ser vivido intensamente. Por saberem isso não têm pressa e apreciam os instantes prolongados com sabor a sal apimentado pelo sol. A partilha com o céu rasgado por pontos de luz cintilante virá depois. Os dois sabem disso e não têm pressa. Abraçam-se, sorriem e os seus olhares cruzam-se no horizonte.

sexta-feira, 31 de março de 2017

O que o tempo não arrasta



Há um ano o meu Amigo Ivar Corceiro chegou à Bulgária. Lá aterrou também uma imensa parte de mim. Uma parte que ele conquistou, ou melhor, algo imenso que se transformou a cada gargalhada que partilhámos. Quando nos despedimos o meu riso afogou-se num mar salgado. Dentro de mim uma mistura tão complexa quanto a sopa Búlgara que ele descreve. O medo do futuro incerto, a alegria de saber que ele iria renascer, o egoísmo profundo da saudade… E também a revolta. Uma revolta ensurdecedora pelo choque da realidade social, a certeza dos sonhos falhados, a desilusão das nossas crenças.

Já várias vezes escrevi sobre ele e outras mais deixei escapar a vontade de o fazer. Passadas quase 9 000 horas de ausência do seu abraço volto a dedicar-lhe o que tenho de mais puro, a seguir ao meu pensamento, as minhas palavras. E ele sabe tão bem o que as palavras significam para mim! Foi na partilha destas que a nossa amizade surgiu, as palavras que deram lugar aos discursos, aos gritos de ordem nas ruas, às conversas ideológicas e filosóficas. Mais tarde a desilusão partidária e pessoal que sentimos, a mesma desilusão que nos afastou do percurso onde nos conhecemos, deu lugar ao silêncio. Foi nesse silêncio mútuo e partilhado que a nossa amizade se solidificou. Um silêncio confortável só se partilha com quem nos faz bem, com quem amamos. É assim com o meu Amigo-Irmão… Foram tantas as vezes que intercalámos as longas horas de conversa com o silêncio. Momentos sentidos com lágrimas nos olhos ou com um sorriso nos lábios.  

Na grande cidade de Sófia ele depressa transformou o espaço e conquistou afetos. É muito fácil para ele encontrar novas moradas em amigos que se multiplicam, a cada brinde observa e encontra noutros a substância que o mantém vivo. Numa busca incessante dele mesmo encontra novos mundos que o acolhem de braços abertos. Bebe a coragem, não de um copo vazio mas, de um copo cheio de emoções e de intensidade em cada instante que respira.

Neste ano que passou muitas coisas mudaram nas nossas vidas e tudo o que nos toca partilhamos por conversas sempre insuficientes. O Ivar pertence ao pequeno núcleo das pessoas que me conhecem integralmente. Quando esteve em Aveiro, num sopro de tempo que atiçou as saudades, disse-me que antes de vir tinha medo de me ver e de não se sentir ele. Tudo o que encontrou na Bulgária o transformou e temia não se reconhecer nas conversas que só nós entendemos. Eu tinha um receio idêntico, o receio de não ter nada interessante para partilhar com o Amigo que em nove meses viveu mais do que eu em anos. Tontice a nossa porque o que nos aproximou foi algo muito superior a qualquer conteúdo que caiba numa conversa, algo intrínseco a nós, talvez não a maneira de pensar mas sim de sentir ou a vontade incessante de sonhar e de viver para sonhar ainda mais.


Escrevo no silêncio que os pássaros madrugadores interrompem. Nos lábios um sorriso e olhos inundados pela saudade. Dedico-te este momento de contrastes Ivar.

Teoria da Dor Relativa

  Pensei a dor como relativa S omada ou subtraída A aumentar ou diminuir Os valores inerciais iniciais. Ouvi falar de uma constante. Certa q...