sábado, 24 de setembro de 2016

O Sonho



Num novo quarto escuro, o animal aninhado sobre si mesmo uivava. Seus gritos ecoavam por toda a cidade que fingia não ouvir.

Os seus átomos de carbono, emaranhados num lençol de água, vibravam ao ritmo acelerado pela dor. Queria desintegrar-se, as suas vísceras soltavam-se pela pele rugosa, áspera. A dor corroía-lhe as entranhas e os ossos. 


Gritava e esperneava porque o sonho que o acompanhara desde sempre deixara de o visitar. Esse sonho dava lugar às longas horas de escuridão, ao silêncio perturbador que contrariava os seus gemidos. Na cabeça um eco vazio carregava a lembrança da imagem que, até então, o acompanhara. O animal sonhava a três dimensões com uma praia coberta de azul e dourado, onde o vento afagava os seus sentidos, onde a maresia o embriagava. Sonhava com a extensão dos seus membros a escavarem punhados de areia seca. Largava cada partícula para que livremente dançasse com os suspiros do ar.


No seu refúgio começara a perder a capacidade de segurar a areia. Esta fugia-lhe, escorregava pela extensão dos seus membros. Quanto mais a tentava segurar mais ela se esvaía. As partículas deixaram de dançar e caíam abruptamente sobre vários montinhos sobrepostos. Até que o sonho deixou de ser a três dimensões, desapareceram os cheiros, o toque do vento, o som da rebentação e as cores. Durou pouco tempo a fechar-se o cenário que era agora a preto e branco.


Desmontado o palco, o animal cada vez mais vivo recusava-se a ser moribundo. Alimentava-se dos sentidos atropelados e das feridas abertas. Talvez por isso se aninhasse perpetuando a dor física, gritava, uivava para expulsar não sabia bem o quê. 


Até que um dia a luz penetrou por uma pequena fresta. A porta do quarto escuro abria-se lentamente. O animal do uivo passou ao gemido enquanto se deixava cegar pela luz. Sentiu um corpo quente, silencioso. Tentou espernear, pontapear-se mas aquele corpo segurou-o com todo o cuidado. Virou-o de lado e num abraço aconchegado apazigou a dor alvoraçada. Assim permaneceram durante horas, até que o corpo quente, silencioso abafou os gemidos. O animal ferido rendeu-se àquela proteção. Finalmente adormeceu embalado pela doçura do afeto.

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