terça-feira, 24 de maio de 2016

Carta a um Amigo



O dia amanhece cinzento lá fora. A natureza contraria a física: primeiro chega o som dos pássaros e lentamente a luz que dá forma e cor à rua. As andorinhas rasam o chão anunciando chuva. Os pardais dão vida à varanda desta casa que ainda não conheceste. Entram e saem agitados, não sei o que procuram na sua liberdade incondicional e invejável. Pergunto-me como terá amanhecido o dia em Sófia. Se há pássaros nesse bairro que outrora foi ocupado por operários que entravam e saiam obedecendo à agitação do horário fabril.

Se aqui estivesses iríamos combinar um café. (Certamente aí não se partilham momentos usando a expressão “vamos tomar um café”). Hoje quereria falar de saudade, num daqueles momentos em que os nossos pensamentos deambulam juntos e chegam ao mesmo ponto de partida. Iríamos sorrir e fingir que encontrámos excelentes conclusões para abafar o vazio interior que a inquietação nos provoca.

Quero falar-te de saudade porque ontem deste outro sentido à palavra. Sempre achei que a saudade é um sentimento egoísta que revela a forma estranha como gostamos do outro, como se as relações pessoais fossem uma espécie de propriedade privada. Sei qual seria a tua resposta: “Sentir saudades é bom, faz-nos sentir vivos! Faz-nos perceber porque gostamos de estar com determinada pessoa ou em determinado local”. Tens razão! Sentir saudades é bom e não é um sentimento meramente egoísta. Há uma mistura que nunca atinge o equilíbrio entre o egoísmo e o bem-querer. A saudade sempre se manifestou em mim com o desejo de um abraço. Tu fizeste-me perceber que é muito mais do que isso: é sentir a impotência ampliada à escala métrica. Milhões de unidades que nos impedem de cuidar de quem gostamos. Querer cuidar não é egoísmo, ou será?

Já chove do outro lado da janela. Como está o tempo em Sófia?

Uma amiga nossa diz-me que não percebe porque fiquei triste por teres emigrado, pois era uma coisa que tu querias e que é boa para ti. Ela tem razão. Não é tristeza, é um sentimento agridoce. Sinto-me contente por estares a vivenciar algo tão cheio de novas emoções e experiências. Sinto-me viva e feliz por ter saudades tuas. És a pessoa mais cristalina que conheço e isso, por si só, traz doçura à saudade. Por outro lado, sinto a acidez da ausência física. Gostaria de caminhar até um dos cafés da beira-mar e, nesses poucos metros que nos distanciavam, aumentar o pH do meu sentimento.

Estou feliz por saber que continuas a viver tudo ao máximo, que observas, nesse teu novo mundo, os pormenores que escapam aos outros. Estou feliz porque a pessoa mais altruísta (a dimensão do teu altruísmo é maior do que este terceiro calhau a contar do sol) que conheço é minha amiga e é capaz de dizer “fazes-me falta”. Tu também me fazes falta, em muitos momentos. Creio que nos mesmos em que eu te faço falta a ti. E aqui falo-te novamente do abraço: a saudade manifesta-se na carência de um abraço.

Nunca vou conseguir compensar o maior abraço que alguma vez recebi. Aquele que aconchegou a minha vida e a vida do João. Entre nós haverá sempre essa dívida imensa: o abraço que nos deste e amparou firmemente as nossas vidas, a nossa vida juntos. Hoje moramos num novo espaço com uma grande janela por onde a luz nos invade os sentidos. Como é a tua casa, aí? Quantas janelas tem?

Despeço-me com um sorriso e com o conforto da tua resposta: “continuamos cá, Dete!” Sim, continuamos! Com esta certeza, e com o amparo da nossa amizade, preencho um pouco o vazio criado pela inquietação da saudade (a não egoísta).

Quero-te bem, Ivar!

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Luz



Quer agarrar a vida com o mesmo vigor

Com que segura os livros que lhe alimentam a existência.

Perde-se em cada virar de página

E reencontra-se sempre que

A contracapa dá lugar um novo título.



A luz reflete nas paredes

Agora brancas.

Quando a dor espreita, ela abre as janelas de par em par

E a energia ionizante desfragmenta

O que antes lhe corroía as entranhas.



Para trás ficaram as paredes manchadas pela humidade

Condensada em fungos de mágoa

A janela que viu correr mais lágrimas do que chuva

O eco dos uivos desumanos

Que as paredes teimavam em revibrar.



Nos destroços deixou o sofá

Onde se aninhava como um animal abandonado

Quando a dor gelada, pontiaguda

Penetrava no corpo exausto

Que não sentia.



Nas malas só couberam as lembranças

Dos momentos de ternura e felicidade

O resto ficou nos escombros do pátio cinzento.

Abre lentamente as recordações encaixotadas

E escolhe o lugar exato para as poisar.

 

Quando acorda enquadra na retina

O que preenche o novo espaço

Certa que tudo será assim um dia:

Poisado num lugar iluminado

Mesmo que a chuva não cesse do lado de fora.


Teoria da Dor Relativa

  Pensei a dor como relativa S omada ou subtraída A aumentar ou diminuir Os valores inerciais iniciais. Ouvi falar de uma constante. Certa q...